sábado, 15 de dezembro de 2007

"Deixe-me ir...preciso andar...vou por aí a procurar, rir pra não chorar". E a música segue seu fluxo perfeito em melodia, notas, tons, arranjos, letra, poesia, canto, alma. Esse samba do Cartola é o que chamo de música de alma, é o “tudo” que falta para o mundo, é suplemento existencial provando a transcedência provocada pela arte. É um abraço de reencontro com a vida ou pelo menos com os desejos mais contidos. A voz do poeta me coloca diante de um artista com longo caminho percorrido, com suprema experiência na vida e de vida. A mensagem soa, ou pelo menos me lembram as palavras revestidas de carinho e sinceridade dos nossos avós. A letra traz a marca de quem viveu alegrias, mágoas, mortes e renascimentos ao longo de uma extensa vivência pelo mundo afora.

Por acaso, tenho me encontrado com Cartola em diversos momentos nos últimos meses. Sua discografia repousa no meu computador, portanto, ando pela casa sabendo que posso ouví-lo a qualquer momento em todos os cômodos. De todos os seus discos, fiz uma seleção das melhores no meu entender. São músicas já conhecidas por mim e gravadas por Caetano, Marisa Monte e outros artístas. Era este meu contato com o mestre. Somente agora estou ouvindo-o realmente em toda sua realidade e plenitude. Sentido o exalar de cada nota pela sala. As notas carregam o perfume da voracidade poética. Isto é arrebatador para quem está deste lado ouvindo. Um ritual sacro-profano e libertador que dispensa qualquer ritual religioso. É poesia, é música, são as duas ao mesmo tempo.

Esse encontro com Cartola também ocorre na rua, onde ao passar pela Mangueira vejo de relance uma estátua linda logo à entrada principal de um centro cultural dedicado ao mestre. Imediatamente me lembrei da estátua do Pixinguinha na Travessa, centro do Rio. As curvas da estátua e a leveza remetida por elas, tal como sua música, me fazem compreender ainda mais a importância deste grande músico para o mundo da arte. Sua estátua é como sua música, suave, repleta de contornos melódicos sofisticados e imponente em si mesmo. No cinema também o encontrei ao assistir o filme “Noel, Poeta da Vila”, surpreendente por focar com muita clareza a amizade entre Cartola e Noel. Lembro da cena mítica ocorrida em uma roda de samba na rua onde um é apresentado ao outro. Nascia alí uma grande amizade regada a muito samba e longas caminhadas embriagadas de poesia, cerveja e arte. Um Cartola magistral, imponente e vigoroso desponta na interpretação do ator Jonathan Haagensen, dando-me agora mais uma imagem do poeta, esta em sua juventude. Eu tinha em mente apenas o visual do poeta nos anos 70 com seus inseparáveis óculos escuros, característica tão marcante que deu em música. Pois é, Max de Castro escreveu e gravou “Os óculos escuros de Cartola”. Um dos últimos encontros foi no camelódromo da Uruguaiana há umas duas semanas. Depois de caminhar horas procurando roupinhas de criança me deparo com uma banca de dvds piratas. Paro, olho por curiosidade para alguns e vejo, lá entre tantos Homens-Aranha 3 e Tropas de Elite, o dvd pirata do longa-metragem “Cartola”, dos diretores Lírio Ferreira e Hílton Lacerda, lançado em 2007 o qual não assisti. Um vácuo na minha busca pelo poéta, tanto que só sossegarei quando assistí-lo. Olha, a tentação bateu e quase comprei, mas, não sei o que me deu, poxa, um filme sobre Cartola não poderia arriscar uma versão pirata. E se tivesse algum problema ? E se não viesse com os extras ? Não, não me arrisquei. Me resignei, respirei fundo e continuei minha caminhada com o desejo contido. Semanas depois encontro no jornal uma breve nota informando que o filme será comercializado oficialmente nas lojas e locadoras. Ufa !!! Está perto, pensei. Agora é só esperar para saciar mais esta sede. Não imaginava no meio desse texto que fosse me lembrar de algo mais, porém me veio a mente agora a minha infância. É, teve um samba da Mangueira em 1983 (eu tinha oito anos, olha só) e o enredo chamava-se “Verde que te quero rosa”, samba que habita minha memória e me carrega para o passado quando ouço. Na época gostava do samba não pelo Cartola, aliás, mal percebia a homenagem da escola mas era a melodia e a interpretação do Jurandir, intérprete antecessor de Jamelão, que me comoviam. Hoje ao escutar este samba sinto um duplo prazer.

Aguardo o próximo encontro com o mestre. Pode ser hoje ou amanhã, pode ser há vinte anos atrás ou daqui há dez dias, sei lá. Só sei que a poesia deste artista vai atravessar com certeza este século que se inicia. Cartola é atemporal em sua arte. Aplausos !!!

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